No lancamento do Manual de Sobrevivencia, o meu pai chega-se ao pe de mim e chuta: tem cuidado que essas letras sao muito mas companheiras.
No Correio da manha: XanaEm grande-entrevista, Xana diz sem receios que foi uma maria-rapaz, cheirou cocaína, fez um aborto e se separou de Zé Pedro (guitarrista dos Xutos & Pontapés) depois de mais de dez anos de uma relação que começou por ser maravilhosa e acabou no limite de vidas opostas. Ela atinada, a levantar-se cedo para ir para a faculdade, a trabalhar, estudar, crescer. Há poucas semanas acabou o mestrado em Estética e Filosofia da Arte. Agora vai iniciar o doutoramento.
Correio Êxito – Fumas muito. Com que idade é que começaste a fumar?
Xana – Cedo, com 13 anos. É um vício terrível. Não consigo deixar.
– Tentaste?
– Numa altura em que tive aulas de canto consegui reduzir, mas ficava num estado de nervosismo tão grande que a própria professora me disse que o melhor era fumar. Não me conseguia concentrar nem fazer nada de jeito.
– Tens outros vícios?
– Não. Tive um período em que bebi bastante álcool e vivi algumas experiências com drogas mas nada que tivesse ficado.
– Que tipo de experiências?
– Houve um período de festas, que durou uns dois anos, em que consumi cocaína. Não me dou muito bem. Desde miúda que não gosto.
– Lembras-te da primeira vez que consumiste?
– Aconteceu no final dos anos 80, numa altura em que a cocaína andava a rodar em Lisboa e em que ‘snifar’ era ‘in’.
– Arrependes-te de ter passado por isso?
– Não me arrependi mas ainda bem que não continuei, porque aquilo é uma porcaria. Como sou muito eléctrica e me dava ainda mais energia, ficava insuportável.
– E ‘charros’?
– Toda a gente fuma, à minha frente e tudo, mas eu só dou uma passa ou outra. Às vezes parece que me deprime. Fico muito fechada. É uma sensação desagradável.
– Há muita gente que associa as tuas olheiras à droga.
– Não meto drogas e tenho olheiras desde bebé. Herdei estes papos, esta coisa mais saliente, do meu pai. Vou preservá-las o resto da vida.
- Foste uma das primeiras mulheres em Portugal a fazer parte do espírito criativo dos anos 80. Sentes-te pioneira?
– Não penso nesses termos.
– Em que termos pensas?
– A imagem que tenho é de mim como uma pessoa que integrou um grupo rock e que viveu toda a envolvência do universo dos anos 80, onde existia um espírito comum a muitas pessoas.
– Julgas-te uma maria-rapaz?
– Fui mas hoje já nem sei o que é que isso quer dizer. Essencialmente, sou uma pessoa, e ponto.
– Que valores é que mais prezas na tua pessoa?
– Tenho 42 anos e muito trabalho para edificar o meu património ético, que ainda está em construção. Prezo princípios e valores como a integridade, a autenticidade, a honestidade com nós mesmos. Tenho um olhar aberto em relação aos outros e à realidade, o que implica algumas não cedências. É aí que sou mais rígida.
– Não há cedências em relação a quê?
– Àquilo que penso que possa colocar em causa essa honestidade.
– A escrita também funciona como desabafo?
– Acontece-me muitas vezes, sobretudo quando tenho um problema, escrever para organizar as ideias. A escrita ajuda-nos a tomar as devidas distâncias em relação a nós mesmos.
– Conheces a sensação obsessiva de um romantismo fatal?
– Nunca percebi bem isso em mim porque, por um lado, sei que sou uma pessoa muito pragmática na resolução das coisas, e por outro tenho um lado sonhador que tem a ver com uma grande necessidade de isolamento.
– Como é que explicas isso?
– Ficar sozinha com as minhas fantasias, os meus mundos e universos. É por isso que os filmes de que mais gosto são os de ficção científica.
– Como é que te analisas no romantismo ligado ao amor?
– Sinto que sou uma pessoa que gosta de amar e de se sentir amada. Isso dá-me alguma consistência e equilíbrio. Nos períodos em que isso não aconteceu fui sempre uma pessoa muito mais desequilibrada.
– Gostarias de ter um filho?
– Não tive por opção e não me arrependo, porque a minha dedicação teria que ser total, o que me iria impedir de fazer outras coisas. Pensei nisso e concluí que nem toda a gente tem que ser pais. E para ser meia mãe, porque tenho uma carreira, porque escrevo e estudo, é melhor não o ser. Tinha muito receio de que pudesse ser uma má mãe. Ou então que, no meio disto tudo, alguma coisa se perdesse.
– É uma opção definitiva?
– É, até porque tenho 42 anos.
– Fizeste um aborto?
– Sim.
– Qual é a tua posição em relação a esse assunto?
– A de sempre: cada mulher é livre de fazer o que quer com o seu corpo.
– Com que recordações ficaste da relação com o Zé Pedro (guitarrista dos Xutos & Pontapés)?
– Boas, sendo que os primeiros oito anos foram maravilhosos, tivemos uma relação excelente, e os últimos dois ou três foram muito complicados. O Zé inclinado para a noite, para uma vida social intensa e muitas drogas, e eu cada vez mais do outro lado porque às oito da manhã tinha que me levantar para ir para a faculdade. Cada vez mais queria outra vida. Cansei-me das drogas e das festas e começámos a desligar-nos. Não porque não gostássemos um do outro mas porque estávamos a viver vidas completamente opostas.
– Sofreste com a separação?
– Aconteceu-lhe o que lhe aconteceu. Há muito tempo que eu estava com medo de que alguma desgraça acontecesse.
– A ele ou aos dois?
– A ele. Porque ele tinha uma vida muito intensa, muito trabalho, concertos, nunca havia um descanso saudável para compensar aquele corrupio. Quando me comecei a sentir cansada e percebi que não estava a aguentar o ritmo mudei de vida. Mas achei que não o devia proibir de fazer o que ele quisesse. Ele teve a liberdade de seguir os seus interesses e eu de seguir os meus. No fim havia uma grande tristeza na relação e pouca proximidade. Não fazia sentido continuar.
– És uma rebelde?
– Não. Refilo. Digo o que penso. Invariavelmente com frontalidade.
– Alguém escreveu que conseguias colocar a voz em ponto de rebuçado. Queres comentar?
– Nunca me considerei uma cantora exímia. A minha voz já teve muitas ‘nuances’ e formas. Nunca cantei da mesma maneira.
– Já te chamaram “emblema do rock português”. Mas detestas essas afirmações...
– Detesto tudo o que seja emblemas, bandeiras, crachás.
– Nem cantar o hino nacional?
– Não gosto nada. É daquelas coisas de que as pessoas precisam para se identificar, mas não acho que a identificação em relação à pátria ou à nossa sociedade passe por aí.
– Consideras-te problemática?
– Não sou propriamente uma pessoa fácil. Se há um conceito que odeio é o do ‘politicamente correcto’. Prefiro uma boa discussão, onde tudo fica esclarecido e se diz o que se pensa, do que, para não criar conflitos, calar-me e elaborar juízos belicosos. Isso faz-me sentir mal. Ser problemática tem a ver com a minha frontalidade, e exijo o mesmo das pessoas. Não admito o cinismo, a hipocrisia nem as falsas relações.
– És muito stressada?!
– Tenho momentos de muita ansiedade. Talvez por viver em Portugal, onde tudo é muito moroso. Há coisas em que se perde muita energia desnecessária. Há, todavia, tempos lentos que são de prazer.
– Tipo sexo tântrico?
– Não pratico.
– Arrependes-te de algo?
– Não, mas gostava de ter a experiência de poder voltar atrás. Se tivesse ido para Nova Iorque com o meu pai e não tivessem existido os Rádio Macau que outra pessoa seria hoje? Devia-nos ser permitido voltar àqueles pontos da vida em que, numa encruzilhada, tomámos determinado caminho. Somos projecto das nossas próprias possibilidades.
"NO INÍCIO QUERIA SER CIENTISTA"
– Como é que te descobriste para a música?
– Não sou eu que me descubro. A minha mãe divorciou-se do meu pai, ele foi para Nova Iorque, ela para Santarém, e eu, que tinha perto de 15 anos, fiquei a morar sozinha no Algueirão. Para grande desgosto da minha mãe, transformámos logo a sala de jantar num estúdio. Mas nessa altura o único que tinha intenção de ser músico era o Flak. Eu queria ser cientista. Depois da fase do deixar acontecer sem pensar em aplicar isso no desenvolvimento do nosso futuro, decidimos dar uns concertos, fomos mostrar a nossa cassete com os temas ‘Bom Dia Lisboa’ e ‘A Noite’ e conseguimos um contrato de imediato. A seguir foi tudo muito rápido. Muitos concertos, fama, trabalho intenso. Éramos ingénuos e não estávamos preparados.
– Em 1992, a meio de uma digressão, no auge do sucesso, os Rádio Macau decidiram parar. Porquê?
– Tinham passado oito anos e estávamos exaustos. Se continuássemos não íamos conseguir fazer as coisas de forma verdadeira.
– Daí para cá voltaram a juntar-se e a separar-se várias vezes. Os Rádio Macau são uma banda com morte anunciada que se vai mantendo de pé?
– O que é que não tem mortes anunciadas?...
– Há quem diga que os Rádio Macau nunca tiveram o reconhecimento que mereciam. Concordas?
– Tivemos reconhecimento mas não tanto sucesso como os outros, porque recusámos coisas. A partir do momento em que um projecto se encaixa dentro do sistema o movimento deixa de existir, o próprio projecto fica absorvido e perde a sua existência autêntica. Nessa altura estávamos a correr tal risco e era isso que não queríamos.
PERFIL
Alexandra Margarida Moreira do Carmo nasceu em Lisboa a 5 de Abril de 1965 e foi morar ainda criança no Algueirão, num “sítio que na altura era maravilhoso” e onde conheceu os Rádio Macau. Diz-se “do sexo feminino mas essencialmente pessoa”, música, licenciada em Filosofia, íntegra e frontal. Desde “Rádio Macau”, de 1984, até ao próximo “disco de canções”, que será lançado em Janeiro, editou oito CD, um deles em nome próprio.
José Manuel Simões