AS CIGARRAS GREGAS...
Este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Ouvi-o logo no porto
depois nos caminhos tortos
5 que sobem do porto ao ponto
onde ressurge Cnossos
Mais tarde à beira de um poço
Por fim diante dos cornos
destes inúmeros touros
10 que há no palácio minóico
Posso fingir que o não ouço
mas atravessa-me os ossos
alastra por todo o corpo
até me escalda nos olhos
15 este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Quando num último sopro
souber que não mais acordo
e tudo estiver em torno
20 imerso no mesmo ópio
decerto ouvirei de novo
no sono dos outros mortos
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
25 Contudo na manhã de hoje
nem só com isso me importo
Pior é sentir que o fogo
lateja sob este solo
Todo este calor de forno
30 não sei já como o suporto
Parece haver um acordo
feito entre o solo e o Sol
E terem ambos proposto
como língua de seus votos
35 este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
Mas se o palácio percorro
eis que sofro de outro modo
Ver que o palácio é dos outros
40 mas que o labirinto é nosso
Que alimentamos o monstro
com o sangue de nós-próprios
Que lhe damos o contorno
da sombra do nosso ódio
45 Que lhe buscamos no dorso
os nossos próprios remorsos
E de tudo isto em coro
nos vai verrumando os poros
este canto rouco rouco
50 das cigarras de Cnossos
Ó Grande Sala do Trono
dos tronos o mais remoto
onde Minos no seu posto
julgará todos os homens
55 Não de assassínios nem roubos
Só do que entregam à morte
E uns colocados no topo
outros no fundo dos fossos
vai repercutir-se em todos
60 vibrando de pólo a pólo
este canto rouco rouco
das cigarras de Cnossos
David Mourão-Fedrreira, As lições do fogo,
p. 68-70 (= Obra poética, 21996, pp.
305-306)