“Olhando agora para exposição, folheando este catálogo, é notória a qualidade experimental do trabalho de Noronha da Costa, a forma como a sua visão cinematográfica e culta filtra a prática da pintura numa difusão de planos notáveis.”
Delfim Sardo
Luís Noronha da Costa é o génio da pintura portuguesa da segunda metade do século XX. A sua obra, projecção de uma exploração inquieta sobre a génese da imagem e suas múltiplas vertentes, é o ecrã dessa genialidade. Esta reflexão constante leva-o a desmarcar-se dos ditos movimentos vanguardistas do seu tempo[1]- Noronha num bird eye shot, tão típico nas películas de Hitchcock fica a olhar de cima como um deus que se distancia das confusões humanas – que o acusam de ser um sell out. Ora nada podia estar mais longe da verdade. Noronha da Costa posiciona-se claramente ao lado de Robert Frost quando este afirma – “Two roads diverged in the woods and I, I took the one less traveled, and that has made all the difference” - tal postura[2], incompreendida pelos seus pares interessados na desconstrução da imagem, faz com que Noronha seja votado ao olvidamento.
A visão de Noronha sobre o panorama artístico contemporâneo, em carta escrita em 1979 é clara “[o] momento histórico da arte que desistiu da imagem, porque sobretudo procura não pensar, entendido ocidentalmente como ver (ter à nossa frente).(…) nas artes plásticas ou se pensa o fim da imagem, e, portanto, a imagem, ou se enche o mundo de lixo, permitindo a criação de vazios que o Poder hoje preencherá com todas as suas actuais formas de repressão e controlo.”[3]
A obra de Luís Noronha da Costa divide-se em duas fases – a primeira objectual e uma segunda que elege como campo operatório a pintura associada à figuração. Nesta primeira fase, situada entre finais da década de sessenta e inícios da década de setenta, grosso modo, a chegada de Noronha e da sua obra é de tal forma avassaladora que é distinguido com o segundo lugar do “prémio GM67”, recebe uma menção honrosa do prémio Soquil, conquista em sessenta e nove o prémio Soquil, e participa na representação de Portugal à Bienal de São Paulo. Aos vinte e sete anos Luís Noronha da Costa está no topo do mundo e tem a critica a seus pés, nomeadamente Rui Mário Gonçalves, Fernando Pernes e José-Augusto França, - é pois de forma atónita que a comunidade artística o vê enveredar pela pintura associada ao regime de figuração.[4] Nesta segunda fase Noronha não pretende regressar à pintura de figuração tradicional -“ A figuração tradicional era uma representação de aparências. Para além dessa consciência que o abstraccionismo trouxe, que nos resta então? Não mais representar coisas, mas apresentar as suas imagens, na verificação de que as imagens são a antítese das coisas, o “ecrã” transparente através do qual vemos a realidade (…) não sou um pintor de coisas e de factos, mas de imagem de coisas.”[5] – ela é apenas a consequência lógica da sua prática e pensamento sobre a arte. “Muitos anos mais tarde, encontraria uma formulação feliz para resumir o seu trabalho: “eu sempre quis ter uma única palavra, ou seja, a do quê da imagem e não da imagem do quê.”[6] Para Luís Noronha da Costa a imagem está intimamente ligada à noção de ecrã, sendo que este realiza a mediação entre a imagem e o espectador no acto de percepção e nesse sentido efectua a clivagem entre a realidade e a imagem.
Facto importante a salientar nesta transição lógica para a pintura é o recurso à técnica de pintura com pistola de spray. Esta técnica permitiu-lhe criar os efeitos de imaterialização da imagem que havia conseguido na sua fase objectual, e apreender a visão na sua própria génese - “A imagem como que se forma aquém da nossa retina, diria que , quase especialmente, nós a sentimos formar-se entre os nosso olhos e o nosso cérebro. (…) É nessa projecção do subjectivo num espaço objectivo que é o da tela que julgo que, minimamente, poderá estar a originalidade do meu trabalho.”[7]
O fim artístico de Noronha da Costa chegaria em 1983 às mãos de um emergente grupo de críticos de arte ávidos de afirmação e como tal pretendendo desvincular-se de nomes como José-Augusto França ou Fernando Pernes – curiosamente os mesmos que haviam aclamado Luís Noronha da Costa. O Artista jamais se recomporia deste rude golpe.
Como todos os génios – deus tem tendência a fazer as suas criaturas mais brilhantes com pés de barro - Noronha da Costa riscou o firmamento e extinguiu-se. Não se extinguiu literalmente, bem entendido seja, o que aconteceu a Noronha foi cair numa espécie de loop onde a rotinização de processos o levou a uma banalização de resultados.
No entanto Luís Noronha da Costa, pela sua produção artística até 1983 que apesar de se pautar por uma notável erudição e consciência cinematográfica, ou talvez por isso mesmo, consegue gerar consenso entre os apreciadores e aqueles que consideram que a arte contemporânea não é mais do que deboche – prova disso está na diversidade dos seus coleccionadores -, jamais poderá ser esbulhado do seu lugar no panteão da arte portuguesa.
[1] Cf. AA. VV., Noronha da Costa Revisitado 1965-1983, ASA, Lisboa, 2003, p.20
[2] Idem, Ibidem, p. 21
[3] COSTA, Noronha, “Três palavras sobre a minha pintura.” Apud AA.VV., Noronha da Costa
Revisitado 1965-1983, ASA, Lisboa, 2003, p.21
[4] Cf. AA. VV., Noronha da Costa Revisitado 1965-1983, ASA, Lisboa, 2003, p.22
[5] Idem, Ibidem
[6] Idem, Ibidem
[7] Cf. AA. VV., Noronha da Costa Revisitado 1965-1983, ASA, Lisboa, 2003, p.25